A negação da sexualidade feminina é historicamente explicada. Não é preciso adentrar no universo das narrativas vigentes, que versam sobre isso, para saber que os anseios femininos eram reprimidos e até vistos como impossíveis. Nessa direção, durante o período atroz da inquisição, os hereges eram perseguidos, para que as autoridades pudessem conter comportamentos considerados contrários ao que era estabelecido e deveria ser fielmente seguido. Para eles, qualquer forma de expressão avessa ao que era regente, deveria ser severamente castigada.
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Assim, na tentativa de suprimir supostos comportamentos heréticos, os inquisidores encamparam uma luta fortíssima e moralizante com intento de controlar o que para eles seriam delitos sexuais. Designada como sodomia, segundo estipulado pelo livro Quinto das Ordenações Filipinas, essa prática se estendia tanto aos homens como mulheres que cometessem o pecado contra natureza. No caso, esse pecado seria tudo que vai na contramão ao que foi proposto pelos preceitos divinos.
Transar com pessoas do mesmo sexo e masturbar pessoas do mesmo sexo eram pecados gravíssimos. Assim, os sentenciados seriam queimados e seus bens confiscados. Aliás, é propício ressaltar que parentes dos condenados também eram vistos como inábeis e infames. Nessa mesma direção, de todos os pecados, a sodomia era mais grave. Contudo, outros também eram dignos de punição: a bestialidade e molice eram incontestavelmente proibidas.
A molice alude à masturbação, porém, estritamente masturbação entre pessoas do mesmo sexo. Em suma, crimes sodomíticos eram muitos graves e um atentado contra natureza divina.
A mulher e o sexo
Acerca do feminino, todas as linhas corporais femininas eram vistas com muita estranheza a apatia. De acordo com tratado Hipocrático, o corpo da mulher era inacessível aos médicos. Desse modo, tudo o que se sabia, eram apenas confissões de parteiras e pessoas que tivessem acesso a esse universo íntimo e intocável. Dito isso, era muito mais difícil qualificarem os atos femininos como sodomíticos, tendo em vista que era impensado acreditar que duas mulheres fizessem sexo e gozassem de prazer, mesmo isto estando preceituado e sendo condenável pela própria Bíblia Sagrada.
Ou seja, era muito mais fácil aceitar a transgressão masculina, pois os seus corpos eram tidos como superiores. Na real, a descrença da sexualidade feminina advinha dessa inferioridade. As mulheres eram tão inferiores que era impensado crer que duas mulheres fizessem sexo.
Benedetta Carlini de Vellano e seus desejos mais loucos
Contrariando regras e transgredindo o tido como natural, Benedetta Carlini de Vellano, (1591-1661), foi uma freira católica mística e lésbica, que viveu na Itália na época da Contra-Reforma. A escritora Judith C. Brown narrou sua vida no livro Atos impuros (1986), que discutiu os acontecimentos que levaram à sua inestimável importância arquivística para os historiadores da sexualidade feminina e, posteriormente, estudos sobre o sexo entre mulheres.
Benedetta Carlini de Vellano, abadessa das freiras teatinas de Pescia, ingressou no convento aos 9 anos. Assim, começou a alegar uma série de visões sobrenaturais aos 23 anos. Na real, eram visões místicas e a garota alegava ver Cristo. Isto evidentemente foi visto como um afronte à fé e até possessão demoníaca. Assim, foi estipulado que a Irmã Bartolemea a acompanhasse continuadamente. Todo este ocorrido desencadeou uma investigação minuciosa por parte da igreja e que derivou na documentação do primeiro romance lésbico da história moderna.
A freira considerada visionária deu origem a uma história tão emblemática, que acabou indo para arte através de livro e filme. Suspense erótico, anteriormente conhecido como Blessed Virgin, é coestrelado por Virginie Efira e Charlotte Rampling.
O filme conta com um erotismo sumamente provocante e traz a tragicidade inquietante da história de Benedetta Carlini. Escrito por David Birke, colaborador de Verhoeven em Elle, Blessed Virgin é ambientado no século XVII e é uma adaptação direta de “Atos Impuros – A vida de uma freira lésbica na Itália da Renascença”.
Atos impuros
O livro Atos impuros: A vida de uma lésbica na Itália da Renascença, de Judith Brown, é uma história oriunda de uma pesquisa inquietante da historiadora norte-americana Judith C. Brown, publicado em 1987.
No livro narra-se toda a história da freira, bem como sua descoberta como uma mulher de ‘má-reputação’ em decorrência de sua afetividade por alguém do mesmo sexo, o que se denotava como antinatural.
O próprio título já traz um paradoxismo envolvente e profano, sobretudo quando colocado sob a ótica religiosa: freira e lésbica, sexo e prazer. Ou seja, alguém que, por ordem divina, deveria seguir a castidade, mas acabou se apaixonando e se vendo defronte aos seus desejos mais avassaladores e que, para sociedade vigente, não deveriam ser nem nomeados.
A freira e sua amante
Como já exposto anteriormente, as visões perturbadores de Benedetta foram o estopim para que chamassem outra freira para acompanhá-la. Desse modo, entra em cena Bartolomea, que protagonizaria o romance quente, pecaminoso e irrefreável.
“Esta irmã Benedetta, então, durante dois anos seguidos, pelo menos três vezes por semana, de noite, depois de tirar a roupa e ir para a cama, esperava que sua acompanhante tirasse a roupa, fingindo precisar de sua ajuda, chamava-a. Quando Bartolomea se aproximava, Benedetta agarrava-a pelo braço e atirava-a à força na cama. Abraçando-a, ela a colocava embaixo de si e, beijando-a como se fosse um homem, falava-lhe palavras de amor. E ela ficava se mexendo em cima dela até que ambas se corrompiam. E assim ela a segurava por uma, duas e às vezes três horas”.(BROWN,1987,p.169).
O caso resultou na separação das duas e o pouco que se sabe é que Benedetta foi enviada para uma prisão, onde permaneceu até morrer.“No fim, Benedetta triunfou. Ela deixou sua marca no mundo, e nem a morte, nem a prisão puderam silenciá-la.” (BROWN,1987,p.198).